A poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar
que esta lhe é superior
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar
que esta lhe é superior
O trecho é de Caetano Veloso. E serve aqui para Cervantes como uma luva. No Quixote, a prosa chega a um ponto de excelência impressionante (aliás, dizem que Cervantes era um pouco frustrado por não ser tão bom na poesia e no teatro quanto era na prosa...) E a amizade tem um ponto sublime com Quixote e Sancho Pança.
Sancho é o segundo grande personagem do livro. Para muitos, é o favorito. Seu jeito atrapalhado, mas sempre honesto, sua ingenuidade carregada de bom senso, sua simplicidade em contestar os grandes da terra, inclusive o próprio fidalgo que lhe emprega, dão a ele o ar de um bom homem, um sujeito que pode não estar fazendo a coisa certa, mas está tentando.
Sancho aparece no livro como um artifício narrativo. Se Quixote viajasse sozinho, como o autor nos mostraria no que ele está pensando? Precisa que ele converse com alguém para expor suas ideias, o juízo que faz de cada batalha perdida. Não fosse por Sancho, o livro seria um longo monólogo, entremeado por cenas de ação e conversa com estranhos. Sancho é o companheiro, o psicanalista e o ouvinte de Quixote. Sancho somos nós, tentando botar juízo em seu amo destrambelhado.
É preciso lembrar que não se trata de um santo. Sancho começa na história a seguir Quixote por um plano bem egocêntrico. Quixote lhe promete uma ilha para governar caso sejam bem sucedidos (no segundo livro, isso chega a acontecer, e Sancho vira um belo governador!) O plano parece bom, e o gordinho, trabalhador, pé-de-boi e arrimo de família, vira estranhamente um assistente de cavaleiro andante.
Leal, Sancho não é só um aproveitador do plano de Quixote. E mesmo depois de perceber que a coisa não é bem como havia imaginado, segue ao lado dele, protegendo Quixote e às vezes até apanhando por ele.
Claro que não é burro. Arquétipo do matuto sabido de nossa literatura (e de várias outras, imagino), às vezes passa a perna em Quixote ou se livre do trabalho pesado em nome de um pouco de ócio, ou até mesmo por bom senso.
O fato é que os dois brigam direto (um não entende como o outro não percebe o mundo do mesmo modo que o outro). Mas sempre terminam dando mais uma chance. Sempre esperam que logo tudo vai dar certo. E acabam dependentes um do outro. Não por qualquer fim que juntos possam alcançar, mas já por gostarem de ir lado a lado, até mesmo meio sem rumo.
Sancho é a contraparte de Quixote. É o que lhe completa. E é um dos grandes amigos que todos nós podemos ter. Devemos agradecer a Dom Quixote por ter lhe dado o emprego. E a Cervantes por nos ter dado tão boa companhia para seguir o cavaleiro mundo afora.
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